A democracia dos EUA e a dívida
A obsessão geopolítica com o conflito na Ucrânia e com a “contenção” da China só complica o quadro
Um default, ainda que transitório, da imensa dívida dos EUA é algo impensável. Faria a crise de 2008 parecer um singelo passeio no parque.
Afinal, o sistema financeiro internacional gira (ainda) em torno do dólar e muitos países e muitas empresas depositam suas reservas nos títulos do Tesouro dos EUA. Boa parte das reservas brasileiras, cerca de U$ 265 bilhões, segundo a última estimativa do Banco Central, está investida nos “treasuries”.
Entretanto, coisas antes impensáveis estão se tornando rotina nos EUA.
Até muito pouco tempo, a tentativa de golpe de Estado e a invasão do Capitólio eram fenômenos inimagináveis, nos EUA. Ninguém sequer cogitava a hipótese de os EUA descerem ao nível de uma republiqueta de bananas. Mas o impensável aconteceu, ante um mundo chocado e incrédulo.
Agora, pela primeira vez na história, o Speaker da House é “demitido”, provocando uma séria crise política e institucional.
Na realidade, os EUA vivem uma espécie de crise política permanente desde a ascensão de Trump, que sempre questionou as instituições estadunidenses. Mesmo acusado de toda sorte de crimes, sua popularidade não para de crescer, e se consolida com atitudes e declarações cada vez mais agressivas contra o “establishment”.
E os republicanos continuam a ameaçar a administração de Biden com o fantasma da imposição do default, causando pânico nos mercados.
Pois bem, não há como deixar de tecer ilações entre essa crise política e institucional e a perigosa curva ascendente da dívida dos EUA.
Conforme bem destacou o New York Times em editorial recente (05-07-2023), os EUA estão “vivendo de dinheiro emprestado”.
Não se trata aqui de defender a ideia ridícula de que Estados não podem gastar mais do que arrecadam, como se fossem donas-de-casa. Podem. E, em muitas situações, como recessões e desacelerações econômicas, devem.
Com efeito, os empréstimos e gastos do governo são necessários para estimular a economia durante as recessões ou acelerar investimentos.
Ademais, os títulos do Tesouro dos EUA, seguros e líquidos, desempenham papel crucial para manter o sistema financeiro global.
Na década de 1990, alguns bons anos de crescimento econômico dos EUA e de redução dos seus gastos militares permitiram ao governo daquele país reduzir drasticamente o endividamento. Ironicamente, isso provocou a reação adversa de banqueiros, os quais advertiram sobre as consequências negativas de uma “dívida federal muito pequena”.
Mas o problema atual está numa dívida muito grande e na sua trajetória de provável insustentabilidade de longo prazo.
Os Estados Unidos, advertem o NYT e muitos economistas, contraem hoje empréstimos pesados durante períodos de crescimento econômico para cumprir obrigações básicas e contínuas. É cada vez mais insustentável. Durante a próxima década, o Gabinete de Orçamento do Congresso prevê que os déficits orçamentais federais anuais ascenderão, em média, a cerca de 2 bilhões de dólares por ano.
Se continuar nessa trajetória, a dívida dos EUA deverá ultrapassar 115 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), em 2033, e atingir 181 por cento do PIB, em 2053. Assim, consequências adversas da dívida tornar-se-ão cada vez mais prováveis, nas próximas décadas.
De modo compreensível, os investidores estão começando a ficar desconfiados e apreensivos.
E é aí que entra a questão política.
A rolagem dessa dívida depende estreitamente da credibilidade do governo dos EUA. E tal credibilidade depende muito, por sua vez, da credibilidade e da estabilidade do sistema político estadunidense.
Ora, como afirmamos, o sistema político dos EUA, antes estável e previsível, tornou-se fonte de instabilidade permanente e crescente.
Ninguém consegue mais prever o que poderá acontecer. Depois da invasão do Capitólio, tudo é possível, nesse ambiente tenso, radicalizado e de fragilização institucional.
Ante tais circunstâncias, embora a probabilidade do default continue baixa, os EUA poderão ser forçados a conviver com taxas de juros mais altas, diminuição dos investimentos, crescimento reduzido, crises periódicas etc.
A obsessão geopolítica com o conflito na Ucrânia e com a “contenção” da China só complica o quadro.
O preço do ataque constante à democracia e às suas instituições poderá ser muito alto. Para os EUA e para o mundo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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